domingo, 5 de maio de 2013

MAR INTERIOR -Crônica

Caros Amigos.
Estou postando um de meus textos, escrito durante uma semana em que tive o prazer de curtir uma das praias de Santa Catarina. A inspiração, como não poderia deixar de ser, foi a visão do mar, que motiva tantos escritores e poetas a ritualizá-lo em suas construções literárias.A foto que anexo, registrei numa madrugada, em uma das praias daquele litoral.

                                                                           

                                                                  MAR INTERIOR
O sol se despedia no horizonte, refletindo no mar uma exuberância de matizes nunca iguais aos dias que antecediam aquele em que Felício, sentado em seu tosco banquinho, no pequeno alpendre de sua meia-água, cumpria um ritual que se repetia diariamente. Ele permanecia por tempo indefinido com os olhos fixos na imensidão do oceano que banhava a areia da praia, marulhando as proximidades de sua casa com o som intermitente que lhe era familiar.

Com a velhice estampada na face, a pele e as rugas espelhando sua trajetória de vida rude e sofrida, dedicada à pesca há mais de cinqüenta anos, Felício fitava o mar, expressando apatia pelos demais elementos que o circundavam.

Os turistas que transitavam pela praia com seus trajes coloridos, predadores da natureza que o pescador tanto amava, a cor esmaecida de sua casinha, tantas vezes repintada, o vento nordeste, executando uma sinfonia em seus ouvidos, nada conseguia desviar sua atenção para o mar.

Absorto em sua postura meditativa, o velho pescador permanecia como que magnetizado pelas águas, até o azul infinito do céu, no seu encontro com o oceano. Sua mulher, Marina, respeitava aqueles momentos em que Felício se mantinha silente, como se uma catarse o envolvesse. Eram minutos que, por vezes se prolongavam por mais de hora. Mesmo não tendo noção precisa das razões que levavam o marido àquele estado de espírito, ela não se atrevia a interrompê-lo.

Para Felício, naqueles momentos aconteciam milagres voluntários que infestam a vida em sua pequenez, nos quais a imaginação projeta, antes do mergulho no sono, a mente desencarnada, para o mistério que cada indivíduo guarda em seu arquivo mental.

São vislumbres secretos da vida, inócuos para muitos que, alheios à percepção da essência contida nas pequenas coisas, permanecem presos à rotina estéril do cotidiano. Interromper Felício em sua visão silenciosa do oceano seria profanar um templo que ele construíra através de uma sucessão de anos e cujos ícones jamais seriam conhecidos ou tocados por estranhos ou invasores daquele espaço sagrado.

Marina preparava a moqueca com o zelo habitual, dirigindo seus pensamentos ora ao passado, ora ao presente, jamais ao futuro. Seus dois filhos, Manoel e Cirino, já há vinte anos haviam rumado para a “cidade grande” em busca da sobrevivência, pois naquela pequena vila de pescadores tornara-se difícil tocarem suas vidas. De quando em quando visitavam os pais. No pouco tempo de permanência , contavam sobre a complexidade da vida urbana. Não fora possível continuar vivendo naquele recanto que se mantivera por tantos anos impregnado pela poesia rimada pelo canto dos pássaros ao amanhecer, pelo verde dos morros que cercavam o local, pelas flores silvestres exalando olores e colorindo os jardins com suas tonalidades variadas.

A besta, representada pela especulação imobiliária desenfreada e o turismo predatório estavam prestes a destruir o que restara daquele paraíso esquecido por Deus.

Os filhos indagavam a Marina quando observavam o pai em sua postura contemplativa. Ela respondia que Felício talvez vivesse suas lembranças, suas viagens em águas profundas na busca do peixe, as tempestades que enfrentara no mar que ele amava, a incerteza do retorno...

O jantar estava pronto e a velha senhora olhou, de relance, pela janela entreaberta, divisando a silhueta de Felício, compondo um quadro com o mar e as nuvens. Ele continuava preso ao encantamento e à magia que o mar lhe trazia. Se existira algum conflito entre Felício e os seus, ou consigo mesmo, dissipava-se nas ondas do mar que ele contemplava. Elas alimentavam seus devaneios e sua alma jamais seria amputada enquanto lhe fossem permitidos aqueles encontros com a natureza.

O mar o convertia em um fiel para o qual todos os demais fascínios eram irrelevantes.

Felício é Poesia!

Quantas vezes lemos pequenas histórias do cotidiano, às quais não damos importância, apesar de poderem modificar nossas vidas.

Felício conseguiu preservar sua identidade em um mundo no qual ela é anulada, dia-a-dia. Não pode haver um mundo diferente se ninguém pensa ou sonha um mundo diferente. O homem, frente ao Novo, volta a ser uma criança, enfrentando uma nova realidade que pode modificar sua vida.

Felício, em sua velhice, conseguiu manter intacto seu mar interior. Sei que jamais poderemos penetrar nesse mar, mas deveríamos nos sentir felizes em saber que ele existe.









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