NÃO QUERO MAIS SER JACK SPARROW
Conto
Para Gustavo, meu neto.
A figura do ídolo, do herói, sempre fez parte da história do homem desde a mitologia grega. Dizem alguns Psicólogos que tanto as crianças, como nós, adultos, precisamos de heróis em nossas vidas, pois eles representam as figuras do Bem e do Mal.
Felipe, com seus três anos de idade, carinhosamente apelidado de “Pipo”, por seus pais, convivia com alguns ídolos que as histórias em quadrinhos e depois a televisão, difundiam em sua programação infantil. Batman, Homem Aranha, e outros, faziam parte do elenco. Quando Pipo se identificava com um deles, por algum tempo o personagem marcava a vida do menino de tal maneira, que ele só atendia o chamado dos pais se eles referissem o nome do ídolo por ele escolhido, naquela fase de sua infância.
A fuga da realidade para a fantasia era inevitável. Pipo sentia como que uma necessidade de aproximação com seu herói temporário. Havia uma identificação com a criação literária e depois com a imagem transmitida pela televisão.
Mesmo admirando um personagem fictício, o garoto, em sua cabeça infantil, desejava se tornar aquele que mais próximo conseguia imaginar como seu ídolo. O escolhido tinha muitos defeitos, mas tinha valores e o menino, consciente ou inconscientemente desejava plantar aqueles valores em si. O jogo de faz-de-conta aguçava sua imaginação. Era uma forma de expressar sua liberdade, até porque, no mundo da imaginação, somos absolutamente livres.
O mais recente personagem escolhido por Pipo e com o qual sua identificação revelou-se bem mais forte do que os que o antecederam, foi Jack Sparrow, o Pirata do Caribe, interpretado, em alguns filmes, por Johnny Depp, um dos atores mais versáteis do cinema.
Pipo encarnou com grande emoção a figura do pirata e, mesmo em sua tenra infância, expressava a intensidade com que Jack Sparrow conseguira influenciar sua vida e ela tinha que ser vivida como uma aventura.
Num domingo à tarde, passeando com seus pais junto à Usina do Gasômetro, em Porto Alegre,imprudente como muitas crianças, ele aproveitou um momento de distração dos progenitores e ingressou num barco de passeio ali atracado, sem que eles notassem. Estava vestido como o pirata, personagem com quem se identificara, na ocasião. Brandindo sua espada de plástico, infiltrou-se entre os turistas que entravam na embarcação, misturando-se com os mesmos, no exato momento em que o comandante deu partida à viagem, pelo lago Guaiba. Era um final de tarde e muitos passageiros tinham como objetivo, além de admirar a natureza, fotografar o pôr-do-sol, um dos atrativos da cidade.
Naquele momento, para o menino, os integrantes do passeio se confundiram com os protagonistas do filme que ele assistira na TV e sentia-se o próprio Jack Sparrow, em luta com seus adversários.
Equanto isso, seus pais, junto ao local de embarque, estampavam em sua face, o desespero, pelo desaparecimento do filho. Eles deixaram de ser coadjuvantes na aventura de Pipo para se tornarem vítimas de um trauma que jamais imaginaram enfrentar.
No barco, o menino continuava vivenciando a figura do pirata, abrindo caminho entre seus “inimigos”, tentando mostrar todo o seu poder, até pela forte razão de que ele estava convencido que, naquele momento, não era o filho mimado pelos pais, mas sim o destemido Jack. Mesmo criança ele era fruto de uma sociedade que tinha necessidade de criar ídolos. Para o público ali presente, que em certas ocasiões alimenta um mito, tudo aquilo era um jogo de cena. Espectadores, eles viam, na representação, um espetáculo para se divertirem.
Na verdade, temos uma tendência para idolatrar o que desejamos e rejeitar o que não nos interessa. Jack Sparrow, para Pipo, era um fascínio. Viver aquela fantasia, principalmente num barco de passeio, era o máximo da glória. Em sua cabecinha infantil, não havia diferença entre um barco de turismo, uma escuna ou um navio pirata. Ele já estava formatado a partir de um estereótipo. Mas, chegou um momento em que sua espada já não brandia com tanta energia e seu entusiasmo não despertava mais a atenção dos passageiros. Eles desviaram sua atenção para o belo pôr-do-sol que se descortinava por entre as ilhas do lago, compondo um cenário nostálgico para os amantes da natureza.
Eu era um dos turistas que assistia as evoluções de Pipo desde sua entrada no barco até me dar conta de que ele estava desacompanhado dos pais. Indaguei a algumas pessoas, ao imediato da embarcação, confirmando o que eu imaginara. Como aquele menino havia subido no barco e o que realmente acontecera, fugia ao meu raciocínio, mas passei a me preocupar com o fato. Conversei com o comandante da embarcação e ele, atento ao problema, comunicou-se através de rádio, com o funcionário que se encontrava junto à guarita do cais. Os pais do menino foram informados da situação e, ansiosos, ficaram no aguardo do retorno de Pipo. Não falei ao menino, para não gerar pânico.
Depois de meia hora de viagem, observei que o verniz de credibilidade de Pipo como personagem, se esgotara. Gradualmente, ele deixava de ser Jack Sparrow e voltava a ser um menino, constatando a falta da companhia de seus pais, e sendo contaminado pelo medo. Ele estava voltando ao mundo real. Freud dizia que “A criança, em seu brincar, se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo de fantasia que é levado a sério. Seria errado supor que a criança não leva a sério esse mundo; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real.”
O pequeno aventureiro foi se encolhendo em sua pequenez, tomando consciência de que perdera sua condição de herói. O brilho em seu olhar, tão semelhante ao de Johnny Depp em seus filmes, agora revelava uma opacidade.
Então, Pipo chorou. Não um choro fingido, argumento muitas vezes usado pelas crianças da sua idade, para conquistar atenção dos pais e obter a satisfação de algum desejo imediato. Era um choro sentido. Havia, em suas lágrimas, o impacto da solidão, do desamparo, mesmo entre tantos seres humanos que o cercavam, pois seus verdadeiros protetores não estavam ali.
Chamei-o para junto de mim, procurando acalmá-lo. Disse-lhe que seus pais o esperavam no píer. Ele reagiu como se não acreditasse no que eu afirmara, olhando para todos os lados, à procura daqueles que representavam a segurança em todos os momentos de sua vida. Antes que ele entrasse em desespero, tentei convencê-lo de que estávamos indo de encontro aos seus pais.
Finalmente retornamos ao local do desembarque. Ali estava o casal com os olhos inchados de tantas lágrimas. Abraçaram o filho, traduzindo naquele amplexo todo o afeto que substituira o desespero representado pela sensação de perda. Foi quando Pipo exclamou: - Não quero mais ser Jack Sparrow!
No momento em que se afastaram, indo em direção ao carro ali estacionado, o menino, agarrado ao pescoço do pai, olhou para trás, localizando-me entre os passageiros que desembarcavam. Com sua pequena mãozinha, acenou para mim. Naquele aceno eu senti a emoção que aflora e toma conta da gente em situações como a que eu fora protagonista. Lembrei então, de minha infância e das tantas aventuras que eu vivera, viajando pelo meu imaginário. Não existiam, na época, os personagens como os representados por Pipo, mas, muitas vezes eu sonhara que era o Zorro, com sua máscara negra e seu vigoroso cavalo a combater os inimigos do Bem ou o Super-Homem, capaz de salvar o mundo, com seus poderes.
Por um acaso, reencontrei o menino, num dos shoppings da cidade. Atento, ele olhava para uma das vitrines das lojas, onde estava exposto um novo personagem das histórias que faziam a cabeça das crianças. Vi quando ele se voltou para os pais e afirmou, de forma enfática: - Eu quero ser o Homem de Ferro!!
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